Thursday 27 November 2014

Sócrates


Uma empresa fictícia, criada por dois artistas russos nos anos 80, dedicava-se à compra e venda de almas. Está certo. Quem tem uma alma e não precisa dela, vende; quem não tem e quer ter, compra.
 
A certa altura, a empresa faliu: não porque se tivesse tornado difícil encontrar almas para a venda, mas porque deixou de haver quem estivesse interessado em comprá-las. Aquelas pessoas que não têm uma alma, ou têm mas querem mais do que uma, deixaram de se preocupar. De modo que terá havido para ali gente a querer vender a sua, e ninguém a queria comprar. Imagino as almas para ali expostas, numa espécie de mercado decadente, à espera, a decomporem-se, a cheirarem mal, enquanto os vendedores aguardavam, cada vez mais impacientes, que os desalmados se apercebessem da sua condição, e se voltassem a preocupar. É a verdade. Bom, a verdade de uma empresa fictícia, criada por artistas. Soube disto através da nova coleção da Saatchi.  
 
Sócrates. É possível que seja culpado, que seja inocente. Que raiva destes tempos que tornam necessário dizer banalidades destas. A maioria de nós não sabe absolutamente nada sobre o caso. Mas não tem faltado quem se prontifique a assegurar que, como é evidente, ele é culpado. Mário Soares, ontem, fez o papel inverso. Com graça, os primeiros atacaram-no prontamente, falhando em perceber que, na realidade, todos eles têm o mesmo pensamento mágico, baseado em ignorância, cheio de vontade de estar certo.
 
Esta fúria toda, para mim, só se explica pela vontade de condenar Sócrates por tudo o que ele fez. Liberais que estão disponíveis para defender que o facto de magistrados ou polícias, gente do poder coercivo do estado, em anonimato, revelarem informação escolhida e privada sobre um indivíduo, é uma mera formalidade. Jornalistas chatos, como tantos em Portugal, dispostos a deixar, pela primeira vez, de usar o condicional e o "alegadamente". Todos estão disponíveis para deixar passar uma, só desta vez, e tudo na enternecedora ilusão de que, se Sócrates for culpado disto, então é culpado de tudo. E a gente sabe bem o que é o tudo, não é? Em tempos em que a política de austeridade, que teria de funcionar (ou então se calhar o que pensamos sobre a natureza da economia e da função salvífica dos mercados e do privado não computa), condena o país, e até mesmo a sua elite económica, a uma pobreza e uma subserviência de décadas. Em tempos em que um governo de direita vende o direito à portugalidade por quinhentos mil euros. Em tempos em que um governo de gente das empresas, que veio para ginasticar um estado mandrião, pô-lo na ordem, perde o rasto dos processos judiciais e não consegue distribuir professores por escolas (you had one job...). Nestes tempos, dá  muito jeitinho que Sócrates seja mesmo culpado de tudo. A ilusão desta gente, que é mesmo entercenedora, é a de que, espalhando achas pelo país todo, só vão queimar o Sócrates. Que desprezando as regras do estado de direito (mas só desta vez), já de si tão frágil, só vão dar dar cabo do Sócrates.

Só espero que a vontade de alguns em condenar Sócrates por tudo não seja compensada pela vontade de outros de o defender de tudo. Que há gente que quer vender a alma, é evidente. Que não haja então quem a queira comprar. Se Sócrates for culpado, tem de ser condenado, rápida e exemplarmente. Alas, nada disso me calará quanto às coisas certas dos governos que ele liderou.

Sunday 9 November 2014

Sérios

Ia dizer algo mais ou menos assim, mas depois perdi o vagar. Nestas coisas, não me incomoda nada estar ao lado de gente tão reacionária. Acho mesmo que o problema do nosso país é não perceber que só nos vão levar a sério no dia em que nos deixarmos de levar tão a sério. Ter havido tanta discussão sobre a rábula do ministro Pires é embaraçante. É do mesmo tipo de minúscula pequenez que nos faz tratar uns aos outros por doutor ou achar que boa escola é uma escola com exames na quarta classe, em que a malta chumbe mesmo. Somos um país de formalistas bacocos, uma espécie de ditadura da literalidade, com bispos e pastores que se encarregam de garantir a mais fria aplicação de uma estupidez exemplarmente séria, cujas regras são tão estúpidas que só permitem a sobrevivência dos estúpidos.